sábado, 23 de outubro de 2010

Caravela

"Outro dia, velejando, avistei uma caravela. À distância sua grandeza chamava-me atenção. Opulenta, dona do mar, desbravadora, astuciosa, ousada; o que mais poderia pensar? Mesmo sentindo-me pequeno diante dela arrisquei aproximar-me, queria contemplar aquela beleza. Ao chegar bem perto sofri com as ondas que ela provocava, parecia estar em guerra com o mar, parecia não me querer perto e desejava afastar-me, uma falta de humildade dela com o mar que cuspia pra longe qualquer coisa que tentasse se aproximar. Insistente, enfrentei as ondas, pois o vento estava fraco. Bem de perto pude descobrir rachaduras, em seu casco; marcas que pareciam me falar de suas conquistas, de sua violência, de suas batalhas, de sua história. Marcas que mais ainda, sem querer, provocavam medo, ameaçavam. Temi estar diante de piratas. Gritei por alguém que lá de cima pudesse me enxergar, mas parecia não me fazer ouvir. Gritava alto, dava voltas ao seu redor, de proa à popa, de bombordo à estibordo, mas nada. Não podia estar vazia! Era uma grande embarcação, suas velas estavam alçadas, tudo me fazia crer que todos estavam lá, e pior, que em algum momento iam aparecer de repente e me capturar. Mas não, não tinha ninguém. Resolvi escalar para apropriar-me dela, para assumir como meu o que havia descoberto. Atraquei meu barco, lancei um cabo, e ferrei em seu bordo para assegurar-me. Comecei a subir, cravava meus pés em suas rachaduras, encontrava impulso e com garra continuava. Mais ainda tinha a sensação de que era um invasor, de que estava fazendo algo de errado, mas também algo de necessário. As rachaduras de seu casco, para mim, eram degraus, para ela, talvez, feridas. Finalmente em seu convés vi um homem caído sobre uma mesa, garrafas quebradas ao seu redor, indício de farras. Outra vez temi. Não podia mais desistir, embora estivesse com medo, já tinha ido muito longe. Chamei por ele, mas nada. Era um homem velho, com aspecto de destratado, roupa velha, parecia violentado, barbas longas, mãos calejadas, olhos fundos, braços fortes, mas entregue, desfalecido. Fenótipo de capitão, mas não parecia comandar nada. Chamei-lhe atenção até que acordasse. E com voz embriagada ele me falava que a seca de vento o colocou naquela situação, que seus marinheiros abandonaram a embarcação, que sozinho ele só tinha o Rum, companheiro inseparável, que estava acabando. “Mas e a caravela, capitão?” Perguntei. “Não há vento, está à deriva” Respondeu-me. “E o Senhor?” “Vou com ela.” Outra vez dentro de mim um desconforto me inquietava. Alguém precisava dizer para ela que ela ainda era caravela, alguém que a fizesse acreditar em si, e descobrir o que nenhuma guerra lhe havia ensinado, ainda mais abatida pela brisa, adversária tão quieta. A caravela precisa saber que é caravela. Mas para isto, pensei, o capitão precisa saber que é capitão."

Samuel Martins

Bem, vamos lá! Esse é um texto do meu gordinho lindo - ele não é gordo; é só um apelido carinhoso. Há muito tempo que ele me pede pra postá-lo e comentar. Mas, na minha negligência e falta de priorizar o pedido do meu namorado, acabei por não fazer isso. Enfim hoje meu coração se alegra por essa falta de antes, que me permitiu poder hoje, no dia da vida dele, atender ao seu coração.
Percebamos essa caravela como o nosso interior, e inserida nesse interior a nossa história de vida, a nossa própria vida. Achemo-nos como o homem novo que Deus nos fez; na história, o narrador. O capitão, o velho homem velho. E o vento, Deus. Acredito que assim fica um pouco mais fácil de adentrarmos naquilo que Deus faz em nossas vidas ao crescermos na intimidade e conhecimento dEle.
Nossa história de vida é totalmente marcada por feridas, pecado, fraquezas e inverdades, sejam manifestados/manifestadores por/de traumas ou não. Essas marcas vão nos fazendo, cada um na sua pessoalidade (individualidade), escravos delas, tornando-nos pessoas condiciondas, que vivem inverdades, que vivem numa falsa autenticidade, numa falsa liberdade. Claro que nós não vivemos apenas essa realidade, mas é ela que fere o nosso interior, afastando-nos de quem nós realmente somos, porque nos afasta de quem Deus realmente é em nós.
Ao termos uma profunda experiência com o Ressuscitado que passou pela cruz - que aqui fique claro: não falo da experiência de sentimento, mas da experiência de vida, real, concreta, que marca, que fere, que entra, que finca - vamos descobrindo nossas misérias, e assim vamos nos encontrando cada vez mais aos pés de Cristo, que é o nosso lugar. E ao irmos descendo na nossa fraqueza, vamos descobrindo a imensidão do amor de Deus por nós, que nos leva a conhcermos as escravidões interiores que vivemos por causa das marcas que falamos acima - o nosso capitão -, e a partir desse conhecimento de nós e de Deus, escolhemos a liberdade de sermos quem realmente somos, porque conhecemos ainda mais, e de forma sem volta, a Deus. E assim a nossa alma clama pela libertação, pelo assumir que somos aquilo que Deus pensa de nós, e não o que as nossas feridas dizem, o que o nosso pecado diz, e por isso o que as pessoas dizem, pensam, o que as situações que vivemos dizem.
E aqui eu entro na grande alegria do meu coração: em quem é o Samuel. O Samuel é, constrangedoramente, exatamente aquilo o que Deus pensa dele. Falo não só com autoridade de namorada, mas com autoridade de quem toca tantas vidas que não conseguem assumir-se, e vejo o Samuel, ainda que não livre das fraquezas, assumir sua verdadeira vida, sua verdadeira identidade, assumir Deus verdadeiramente. É impressionante como ele é um homem que olha para o velho e diz, com atitudes e decisão: eu não sou você! Me constrange a forma como ele conhece a Deus e se deixa conhecer por Deus, e mais: a coragem que ele tem de se conhecer. Acreditem: não é fácil conhecer o seu interior ferido!
No dia de hoje, que poderia ser mais um dia 23 de outubro, ou qualquer dia 23 de outubro, é um dia que Deus escolheu para também muito me amar. Isso mesmo: me amar. Hoje Deus não ama só o Samuel. Hoje Ele celebra a infinita felicidade por esse filho que é um dom que muito alegra Seu coração de Pai. Mas hoje Deus também me ama, porque essa vida que é celebrada hoje é minha vida. Essa vida transforma a minha. É uma vida que também é minha, para mim. Então, Deus, ao me dar essa vida, quis me amar. E é com imensa gratidão a Ele que hoje vivo o mistério desse infinito amor, que é pelo gordinho e por mim! Hoje tenho a honra de elevar minha voz ao céu para louvar a Deus por essa vida, em que a caravela sabe que é caravela, o capitão sabe que é capitão, o narrador sabe que é narrador, mas principalmente: o narrador sabe quem é o vento! E por isso é tão feliz!!!!

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Historinha!

"Preste atenção nessa história que eu vou lhe contar.
Essa história que eu conto é pra fazer pensar.
No altar da Igreja, um belo dia, chegou o sacristão, com a vassoura, a pá e o pano pra limpar o chão.
E lá chegando encontrou um palhaço a brincar, equilibrando uma bola com seu calcanhar.
E entre risos o palhaço escorregou no chão.
E terminando a cambalhota viu o sacristão.
Mas que vergonha! O que é isso? - Disse o sacristão.
Onde se viu fazer bagunça aqui?! - Lhe disse então.
Mas o palhaço sorriu e disse a cantar:
- Eu sou palhaço e brincando é que eu sei rezar! Como você, o que tenho pra oferecer! Igual a você, o melhor para oferecer pra Deus!
Essa palavra, então por fim, calou o sacristão.
Ele lembrou que o melhor se dá de coração.
E o palhaço, alegremente, assim se despediu.
Numa pirueta louca e um pulo, ele partiu.
Mas o que nem sacristão e nem palhaço viu...
É que a imagem do Menino Jesus sorriu!"

Essa é uma música do Grecco. A primeira vez que a ouvi, tinha uns 10 anos..e cantei com meus irmãos numa Feira da Providência (hoje Exponatal), num show para as crianças, foi tipo um teatro cantado. Lembro que ainda naquela época essa música mexeu muito comigo. Não entendia direito, só sabia que podia dar o que eu tinha pra Deus e tentar amá-Lo.

Hoje trago essas palavras para o blog, porque elas dizem respeito ao que é inerente ao homem, toca naquilo que é mais profundo em nosso ser (corpo e alma): a nossa identidade. A nossa identidade que não é simplesmente quem nós somos, mas quem Deus nos criou pra ser, o que Deus pensa de nós. Nós não somos por nós mesmos, mas por Aquele que aceita uma simples cambalhota e uma bola equilibrada no pé porque é o que temos de melhor pra dar pra Ele. Nós nos perdermos num desejo de amarmos a Deus de forma perfeita, e acabamos por nos desesperarmos ao nos encontrarmos com nossas limitações, enquanto Ele espera que nós demos o que temos, o nosso nada, o nosso imperfeito, para que nEle sejamos plenos. O pior é que quanto mais nos frustamos com as nossas fraquezas, mais nos afastamos do nosso verdadeiro Eu, do que temos e somos desde toda a eternidade. Precisamos aprender desse palhaço o assumir quem somos diante de Deus, e quem Deus é para nós. Assim, não há miséria nenhuma que nos impeça de sermos quem somos, filhos amados, livres, que, sendo palhaços, assumem o seu ser-diante-de-Deus, e a Ele ofertam suas brincadeiras e palhaçadas.

Quem é você? Quem é Deus? Há quanto tempo você vem se perdendo em ser quem você não é? E há quanto tempo você deseja assumir quem você realmente é?

Sejamos palhaços! Todos palhaços! Se isso é o que torna a Verdade da vida palpável!

No Shalom do Pai, Lia Maia.

(Perdão pela falta de tempo para melhor fazer-me entender!)